A área de cuidados paliativos avançou muito nos últimos anos, e hoje trata todos os pacientes com doenças que coloquem sua vida em risco, independentemente do prognóstico.
Até a década de 1970, quando um médico se deparava com um caso grave, sem perspectiva de cura, ele se limitava a anotar três letras no prontuário médico: RHD, abreviatura de “regime higieno-sanitário”. A sigla, repleta de estigma, significava que a medicina não tinha mais nada a fazer pelo paciente, que deveria ser mandado para casa, para morrer com a família. Sem assistência médica, não era raro que ele retornasse ao pronto-socorro, tempos depois, com dores lancinantes, crises de vômitos, falta de ar ou outros sintomas angustiantes e difíceis de cuidar fora do ambiente hospitalar.
Com a evolução da medicina e dos cuidados em saúde, tornou-se quase inimaginável deixar uma pessoa morrer de uma doença que cause mal-estar físico e psicológico sem nenhum tipo de amparo que amenize seu sofrimento. Contudo, a área que estuda e estabelece técnicas e diretrizes para a prática desse tipo de cuidado só começou a se desenvolver de forma mais organizada no Brasil a partir dos anos 2000, embora ainda hoje enfrente muito preconceito e desinformação. Falo dos cuidados paliativos, tão necessários nos serviços de saúde do mundo todo.
Em 2021, ao apurar as denúncias contra o plano de saúde Prevent Senior, a CPI da pandemia foi palco de inúmeras distorções acerca dos cuidados paliativos, com frequência associados ao abandono e à desistência.
De fato, quando começaram a ser aplicados nos países desenvolvidos, na década de 1960, seu objetivo era reduzir a dor e o sofrimento de pessoas que estivessem na fase final da vida. Assim, a abordagem dos cuidados paliativos ficou associada aos, à época, chamados “pacientes terminais”.
Com o avanço da área, os especialistas passaram a tratar todos os pacientes que tivessem doenças que colocassem sua vida em risco, independentemente do prognóstico. Qualquer paciente com uma doença grave, com sintomas que dificultassem seu tratamento e gerassem sofrimento poderiam se qualificar para receber cuidados paliativos.
Como afirmou em entrevista o médico paliativista Daniel Forte, o foco dos cuidados paliativos são as necessidades do doente, e não a doença em si, diferentemente de outras áreas da medicina. A distinção pode parecer irrisória, mas é enorme: significa que a equipe de especialistas da área não se concentra no tratamento da doença, mas no paciente e suas demandas, ajudando-o a superar as dificuldades causadas pela doença e seu tratamento.
Nem todos os pacientes estão no fim da vida, muitos apenas enfrentam problemas de saúde graves ou tratamentos que são difíceis de encarar, e por isso precisam de suporte.
O Brasil tem 191 equipes capacitadas para oferecer esses cuidados. Embora o SUS tenha como meta implementar a abordagem, que é multidisciplinar e inclui profissionais de várias áreas da saúde, como fisioterapeutas, enfermeiros, médicos, nutricionistas, psicólogos, entre outros, o caminho para isso ainda não foi estabelecido. Faltam políticas públicas e financiamento que permitam fornecer esses cuidados aos usuários do SUS.
Também há muita desigualdade: o município de São Paulo, por exemplo, tem mais profissionais qualificados do que toda a região Norte do país. Assim, o serviço se torna acessível quase que exclusivamente aos usuários do sistema privado e moradores dos grandes centros urbanos.
As faculdades de medicina, embora tenham começado a tratar do tema com mais frequência, ainda não oferecem uma cadeira de cuidados paliativos. Não é de se estranhar, portanto, que não apenas a população desconheça o trabalho dos especialistas, mas que médicos também acreditem que seu objetivo é apressar o processo de morte.
É preciso regulamentar a prática e capacitar profissionais para que os serviços de saúde públicos e privados possam fornecer esses cuidados tão importantes. Enquanto isso não acontecer, as distorções e os preconceitos que vimos na CPI continuarão a ocorrer.
Longe de significar descaso e abandono, os cuidados paliativos oferecem dignidade aos pacientes. Muitos morrerão enquanto recebem assistência, outros viverão alguns meses ou anos e outros, ainda, vão se curar. Afinal, a vida é imprevisível.
É exatamente por se interessarem pelos pacientes que os profissionais que atuam nos cuidados paliativos buscam o objetivo maior da medicina: aliviar o sofrimento humano, não importa quanto tempo de vida haja pela frente.
FONTE: https://drauziovarella.uol.com.br/coluna-2/cuidados-paliativos-nao-significam-o-fim-da-vida-coluna/
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